O
jantar daquela noite não foi dos melhores. Na verdade, os jantares do final do
mês nunca eram muito bons, pois consistiam apenas de sobras. Todo início de
mês, as provisões chegavam de Riverwatch, junto com mensagens de nossos
familiares e ordens de nossos superiores. Amanhã seria o dia.
Mastigando e engolindo com esforço a
carne dura, eu jantei com a cabeça baixa e não pronunciei uma palavra sequer
com meus companheiros. A imagem da sombra no meu quarto não saia da minha
cabeça.
Eu ainda estava sonolento, e as
luzes fracas das tochas tremeluzindo com o vento embaçavam minha visão e faziam
parecer que eu estava sonhando acordado. Levantei a cabeça ao ouvir um dos
Cavaleiros de Riverwatch dizer algumas palavras sobre oração e vigia. Alguns
dos garotos se levantaram e foram para um pequeno santuário dedicado a Kellos,
que ficava no centro da fortaleza.
Kellos era cultuado por praticamente
todos os guerreiros de Terrinoth, e nós o chamávamos de deus. Porém, ele não
era como os deuses élficos lendários, que criaram o mundo e as raças, e que
tinham poder sobre inúmeras coisas. Kellos já fora um humano. Os livros de
história falavam dele e de seu heroísmo durante a Segunda Escuridão. A cidade
de Vynelvale, logo ao sudeste de Sundergard, tinha um grande monastério
dedicado a ele, e muitos devotos de toda Terrinoth faziam procissões a pé por
incontáveis distâncias até a cidade sagrada.
Eu não era muito religioso, mas
respeitava Kellos e admirava seus feitos heroicos. Quem sabe um dia eu fizesse
dez por cento do que ele fez, e conhecesse metade das coisas que ele conheceu.
Mas, por enquanto, eu apenas iria fazer meu dever e vigiar o sul da fortaleza
novamente, mais uma noite.
Após lavar meu rosto para despertar
mais um pouco, subi pela mesma escadaria que tinha descido mais cedo, acendendo
novamente algumas tochas que já tinham se apagado com a força do vento. A chuva
não dava sinais que iria parar, e agora se ouviam trovões à distância. Minha
vigia era apenas simbólica, pois eu mal conseguia ver dois palmos a minha
frente sem a luz da lua e com a chuva impossibilitando que as tochas lá embaixo
ficassem acesas. Vez ou outra, um relâmpago iluminava a floresta à frente e eu
via uma paisagem sinistra se revelar de relance diante dos meus olhos, apenas
para se apagar novamente em instantes.
E assim se seguiu a noite. Ninguém
apareceu para conversar, como já seria de se esperar, e, quando eu estimei que
já teria se passado um quarto da madrugada, a chuva começou a acalmar, e a
tempestade estava se distanciando para o oeste cada vez mais.
Não demorou muito para que eu
ouvisse uma voz me chamando, e um de meus colegas trocasse de turno comigo.
Apenas agradeci e segui para meu quarto. Estava morrendo de sono.
A umidade era quase palpável dentro
das paredes de pedra. Depois de tanto tempo seguido de chuva, ia demorar uns
dias para que tudo secasse e voltasse ao normal. Os lençóis da minha cama
estavam meio úmidos, mas não tinha muito o que fazer. Eu suspirei, me despi,
deixando apenas a roupa de baixo, e deitei.
Apesar de estar cansado, acordei
algumas vezes durante a noite. Não me lembro de ter tido pesadelos, mas
despertava com uma sensação ruim. Toda vez eu lembrava da sombra, mas, ao olhar
em volta, tudo estava normal. Acabei me convencendo que estava ficando paranoico,
e finalmente consegui dormir em paz.
Quando abri os olhos na manhã
seguinte, a luz do sol entrava pelas frestas da janela. Fiquei contente ao ver
o tempo limpo de novo. Me espreguicei enquanto permanecia na cama, com um pouco
de preguiça de levantar. Mas, então, lembrei que hoje chegariam as cartas de
Riverwatch, e saltei rapidamente da cama, me vestindo e disparando em direção
ao salão principal. Fazia quase seis meses que não falava pessoalmente com meus
pais, e eu estava ansioso para saber se tudo corria bem. Eles mandavam uma
carta simples todo mês, apenas para que eu ficasse tranquilo, e eu sempre
respondia algo também, apenas para que soubessem que tudo continuava normal por
aqui. Nós apenas podíamos nos ver de seis em seis meses, quando alguns eram
liberados da fortaleza para visitar suas famílias brevemente.
Entrei no salão e avistei algumas
cartas espalhadas sobre a mesa, e alguns garotos nos cantos lendo as que tinham
recebido. Eu me apressei e comecei a procurar alguma que estivesse endereçada a
mim, mas não conseguia encontrar.
“Acho que você está procurando
isso”, disse a voz de Sir Shaldorth atrás de mim. Me virei e dei de cara com
sua mão estendida segurando a carta que eu estava procurando.
“Senhor, por favor, não faça mais
isso. Eu fiquei muito preocupado quando não encontrei a carta.” Tentei forçar
um sorriso, para não parecer bravo.
“Segurei sua carta porque precisava
falar com você. Vamos até meu aposento.” Ele estava bastante sério.
“Aconteceu alguma coisa, senhor?”
Comecei a abrir a carta dos meus pais bem devagar, enquanto estudava o rosto de
Sir Shaldorth. Suspeitei que ele também tivesse recebido uma carta, mas que não
tivesse gostado muito do conteúdo dela. De certo modo, eu estava certo.
Ele virou as costas e começou a se
dirigir para seu aposento. Eu o segui enquanto lia a carta de meus pais. Tudo
estava bem, graças aos deuses, mas meu pai falou que havia rumores de conflitos
no norte, próximo a região da Fronteira. Eu estremeci. As terras além da
Fronteira eram a região onde se suspeitava que os dragões estivessem se
escondendo após sua fuga, tramando algo desde então, para finalmente destruírem
Terrinoth e tomarem a última runa dos elfos. Meu pai não soube dizer o que era,
e nem quem estava envolvido.
O silêncio de Sir Shaldorth estava
me incomodando, e eu resolvi tocar no assunto para jogar conversa fora.
“Meu pai parece estar preocupado com
algo acontecendo perto da Fronteira.” Sir Shaldorth continuou quieto. Foi
apenas quando nós dois entramos em seu aposento e a porta atrás de nós se
fechou que ele começou a falar.
“O governador de Riverwatch mandou
uma carta para nós, Cavaleiros. Na verdade, eles receberam um pedido de ajuda
de uma das torres da Fronteira.” As torres da Fronteira eram pequenos postos
avançados mantidos por humanos, anões, orcs e gnomos. Haviam sete delas, e sua
missão era evitar que qualquer coisa além da Fronteira entrasse em Terrinoth.
Era um trabalho parecido com o que fazíamos em Sundergard, mas lá era um pouco
mais complicado, e os patrulheiros escolhidos eram só os melhores guerreiros
das nossas terras.
“A torre I capturou um goblin das
tribos além da Fronteira.” Continuou Sir Shaldorth. “Ele estava tentando se
infiltrar em Terrinoth para conseguir informações. Eles torturaram a criatura e
ela confessou que estão planejando uma invasão liderada por ninguém mais
ninguém menos que o próprio rei goblin, o infame Splig. Eles deram graças aos
deuses por terem conseguido essa informação a tempo, pois se não seriam
dizimados. Os goblins pretendiam se esgueirar por uma região ao sul da torre I,
onde atravessariam o Rio Lotham com suas hordas e tomariam as duas torres do
sul assim que baixassem a guarda. Os goblins não sabem que seu espião foi
capturado, pois os patrulheiros o convenceram a escrever uma carta dizendo que
está tudo correndo normalmente e enviar para seus superiores. Ao que tudo
indica, as hordas virão em sete dias. Eles precisam de ajuda para fortalecer
suas defesas e pegar os goblins de surpresa.”
Eu mal conseguia respirar. Em toda minha
vida, aquela era a primeira vez que um conflito estava acontecendo de verdade
em Terrinoth. Bem, ele ainda iria acontecer, na verdade. Meu pai estava certo
em relação aos rumores, mas não pude deixar de pensar que, se até meu pai já
tinha ouvido falar, o que impedia os goblins de não terem alguém informando
eles também.
“Mas, senhor, por que está me
contando tudo isso? Não é um assunto confidencial?” Perguntei, ainda atônito
com as informações e com mil coisas passando por minha cabeça.
“Regg, acho que você vai realizar
seu sonho de conhecer Terrinoth um pouco antes do que pensava. Eu preciso
mandar alguém competente de Sundergard para ajudar. Eu não posso ir, preciso
supervisionar os garotos que estão sob minha responsabilidade. Os outros Cavaleiros
também. Você é um dos mais velhos e mais experientes dentre os que ainda não
são cavaleiros, então já mandei uma carta de volta ao governador dizendo que
você irá.”
“Espere, só uma pessoa? Como eu
sozinho serei capaz de ajudar os patrulheiros?”
“Mais pessoas estão vindo, você irá
conhecê-las em breve. Além disso, os patrulheiros da torre II irão se deslocar
para reforçar o sul da torre I. Você também não conhece os magos. Eles são
muito poderosos e valem por dezenas de goblins com adagas. E os goblins não têm
feiticeiros para ajudá-los, não agora que a magia se perdeu em Mennara. Esse
não vai ser um combate de números, mas de inteligência. Os goblins estão
confiantes, e vão quebrar a cara. Você aprenderá muito com essa viagem.”
“Mas se a magia se perdeu em
Mennara, como ainda temos magos lutando ao nosso lado?” Eu não estava
entendendo, como ainda existiam pessoas capazes de usar magia, se as runas
tinham sido tomadas pelos dragões?
“Eu não sou a pessoa mais adequada
para explicar esses assuntos de magia, Regg, mas já vi esses homens e mulheres
em ação. Pelo que ouvi dizer, alguns conseguem retirar energia da runa restante
que está com os elfos, por mais que ainda esteja longe, pois estudaram muito
para desenvolver essa habilidade; enquanto outros têm como fonte de poder algum
artefato. A questão é que apenas os que são feiticeiros natos não conseguem
mais acessar a magia, por isso não precisamos nos preocupar tanto com raças
tribais, que dependem totalmente de sua linhagem sanguínea para utilizar
feitiços.”
Sir Shaldorth esclareceu um pouco
minha dúvida, mas eu ainda não acreditava que seríamos capazes de lutar contra
hordas de goblins em menor número. As histórias diziam que eles lutavam até a
morte e eram muito determinados. Mas a história acabara de ser contradita
quando Sir Shaldorth contou sobre a traição de um deles, então eu preferi não
mencionar isso.
“Quando devo partir?” Foi apenas o
que consegui dizer.
“Amanhã de manhã um barco virá de
Vynelvale. Ele trará dois de seus companheiros de viagem. Vocês imediatamente
seguirão sozinhos até a torre I, pois não podemos chamar atenção. Terrinoth não
está preparada para lidar com um conflito ainda, e não podemos arriscar que
traidores levem informações para os goblins.”
Assenti com a cabeça. As coisas
ainda não estavam claras. Até algumas horas atrás, eu mal imaginava que um dia
conheceria outro lugar que não fosse Riverwatch ou Sundergard, e agora eu
estava partindo numa missão importantíssima para a Fronteira.
Sir Shaldorth percebeu que eu
precisava refletir, e pediu para que eu fosse descansar. Eu estava liberado do
meu turno de vigia por hoje. Só os deuses sabiam quando eu faria um turno de
vigia de novo.
Eu saí do aposento de Sir Shaldorth
e comecei a me dirigir para meu quarto. Mal tinha acordado e já precisava
deitar de novo. Eu queria escrever uma carta para meus pais tranquilizando-os.
Não iria falar sobre minha missão, apenas ia fingir que tudo continuava o
mesmo.
Quando abri a porta do meu quarto,
tudo parecia escuro. A manhã lá fora estava clara, e o sol ainda deveria estar
entrando pelas frestas da janela. Mas tudo estava tomado por uma sombra. A
sombra começou a se mover, deslizando sobre as paredes e indo parar num ponto à
frente da minha cama, diante de onde eu estava parado, ainda com a mão na
maçaneta da porta, com medo de dar um passo adiante. Uma silhueta se formou
diante de mim, e dessa vez eu pude perceber que não era apenas um vulto. Era
uma forma feminina. Era possível distinguir seus cabelos longos, como se
estivessem esvoaçando com a brisa. Porém, ainda era uma silhueta, e eu não
podia ver seu rosto ou seus detalhes. Ela estava de joelhos no chão, e por um
momento parecia que não sabia onde estava, e não tinha notado minha presença.
Mas de repente ela moveu sua cabeça e, por mais que não pudesse ver seus olhos,
eu sabia que estava olhando para mim. Eu não consegui mover nenhum músculo, e
não sei quanto tempo fiquei naquela posição, apenas fitando a criatura à minha
frente.
De repente, tudo passou. O sol
estava entrando novamente pelas frestas da janela, e as coisas estavam do jeito
que eu tinha deixado no quarto. Não havia nenhum sinal da sombra. Dessa vez, eu
sabia que não tinha sido só uma ilusão ou um pesadelo, ela era real, mas eu não
sabia o que ela era.
Aquela
foi a segunda vez que a vi.