domingo, 19 de maio de 2019

Os Cavaleiros de Riverwatch [1: Alianças/Amizades] - Parte 2


O jantar daquela noite não foi dos melhores. Na verdade, os jantares do final do mês nunca eram muito bons, pois consistiam apenas de sobras. Todo início de mês, as provisões chegavam de Riverwatch, junto com mensagens de nossos familiares e ordens de nossos superiores. Amanhã seria o dia.
            Mastigando e engolindo com esforço a carne dura, eu jantei com a cabeça baixa e não pronunciei uma palavra sequer com meus companheiros. A imagem da sombra no meu quarto não saia da minha cabeça.
            Eu ainda estava sonolento, e as luzes fracas das tochas tremeluzindo com o vento embaçavam minha visão e faziam parecer que eu estava sonhando acordado. Levantei a cabeça ao ouvir um dos Cavaleiros de Riverwatch dizer algumas palavras sobre oração e vigia. Alguns dos garotos se levantaram e foram para um pequeno santuário dedicado a Kellos, que ficava no centro da fortaleza.
            Kellos era cultuado por praticamente todos os guerreiros de Terrinoth, e nós o chamávamos de deus. Porém, ele não era como os deuses élficos lendários, que criaram o mundo e as raças, e que tinham poder sobre inúmeras coisas. Kellos já fora um humano. Os livros de história falavam dele e de seu heroísmo durante a Segunda Escuridão. A cidade de Vynelvale, logo ao sudeste de Sundergard, tinha um grande monastério dedicado a ele, e muitos devotos de toda Terrinoth faziam procissões a pé por incontáveis distâncias até a cidade sagrada.
            Eu não era muito religioso, mas respeitava Kellos e admirava seus feitos heroicos. Quem sabe um dia eu fizesse dez por cento do que ele fez, e conhecesse metade das coisas que ele conheceu. Mas, por enquanto, eu apenas iria fazer meu dever e vigiar o sul da fortaleza novamente, mais uma noite.
            Após lavar meu rosto para despertar mais um pouco, subi pela mesma escadaria que tinha descido mais cedo, acendendo novamente algumas tochas que já tinham se apagado com a força do vento. A chuva não dava sinais que iria parar, e agora se ouviam trovões à distância. Minha vigia era apenas simbólica, pois eu mal conseguia ver dois palmos a minha frente sem a luz da lua e com a chuva impossibilitando que as tochas lá embaixo ficassem acesas. Vez ou outra, um relâmpago iluminava a floresta à frente e eu via uma paisagem sinistra se revelar de relance diante dos meus olhos, apenas para se apagar novamente em instantes.
            E assim se seguiu a noite. Ninguém apareceu para conversar, como já seria de se esperar, e, quando eu estimei que já teria se passado um quarto da madrugada, a chuva começou a acalmar, e a tempestade estava se distanciando para o oeste cada vez mais.
            Não demorou muito para que eu ouvisse uma voz me chamando, e um de meus colegas trocasse de turno comigo. Apenas agradeci e segui para meu quarto. Estava morrendo de sono.
            A umidade era quase palpável dentro das paredes de pedra. Depois de tanto tempo seguido de chuva, ia demorar uns dias para que tudo secasse e voltasse ao normal. Os lençóis da minha cama estavam meio úmidos, mas não tinha muito o que fazer. Eu suspirei, me despi, deixando apenas a roupa de baixo, e deitei.
            Apesar de estar cansado, acordei algumas vezes durante a noite. Não me lembro de ter tido pesadelos, mas despertava com uma sensação ruim. Toda vez eu lembrava da sombra, mas, ao olhar em volta, tudo estava normal. Acabei me convencendo que estava ficando paranoico, e finalmente consegui dormir em paz.
            Quando abri os olhos na manhã seguinte, a luz do sol entrava pelas frestas da janela. Fiquei contente ao ver o tempo limpo de novo. Me espreguicei enquanto permanecia na cama, com um pouco de preguiça de levantar. Mas, então, lembrei que hoje chegariam as cartas de Riverwatch, e saltei rapidamente da cama, me vestindo e disparando em direção ao salão principal. Fazia quase seis meses que não falava pessoalmente com meus pais, e eu estava ansioso para saber se tudo corria bem. Eles mandavam uma carta simples todo mês, apenas para que eu ficasse tranquilo, e eu sempre respondia algo também, apenas para que soubessem que tudo continuava normal por aqui. Nós apenas podíamos nos ver de seis em seis meses, quando alguns eram liberados da fortaleza para visitar suas famílias brevemente.
            Entrei no salão e avistei algumas cartas espalhadas sobre a mesa, e alguns garotos nos cantos lendo as que tinham recebido. Eu me apressei e comecei a procurar alguma que estivesse endereçada a mim, mas não conseguia encontrar.
            “Acho que você está procurando isso”, disse a voz de Sir Shaldorth atrás de mim. Me virei e dei de cara com sua mão estendida segurando a carta que eu estava procurando.
            “Senhor, por favor, não faça mais isso. Eu fiquei muito preocupado quando não encontrei a carta.” Tentei forçar um sorriso, para não parecer bravo.
            “Segurei sua carta porque precisava falar com você. Vamos até meu aposento.” Ele estava bastante sério.
            “Aconteceu alguma coisa, senhor?” Comecei a abrir a carta dos meus pais bem devagar, enquanto estudava o rosto de Sir Shaldorth. Suspeitei que ele também tivesse recebido uma carta, mas que não tivesse gostado muito do conteúdo dela. De certo modo, eu estava certo.
            Ele virou as costas e começou a se dirigir para seu aposento. Eu o segui enquanto lia a carta de meus pais. Tudo estava bem, graças aos deuses, mas meu pai falou que havia rumores de conflitos no norte, próximo a região da Fronteira. Eu estremeci. As terras além da Fronteira eram a região onde se suspeitava que os dragões estivessem se escondendo após sua fuga, tramando algo desde então, para finalmente destruírem Terrinoth e tomarem a última runa dos elfos. Meu pai não soube dizer o que era, e nem quem estava envolvido.
            O silêncio de Sir Shaldorth estava me incomodando, e eu resolvi tocar no assunto para jogar conversa fora.
            “Meu pai parece estar preocupado com algo acontecendo perto da Fronteira.” Sir Shaldorth continuou quieto. Foi apenas quando nós dois entramos em seu aposento e a porta atrás de nós se fechou que ele começou a falar.
            “O governador de Riverwatch mandou uma carta para nós, Cavaleiros. Na verdade, eles receberam um pedido de ajuda de uma das torres da Fronteira.” As torres da Fronteira eram pequenos postos avançados mantidos por humanos, anões, orcs e gnomos. Haviam sete delas, e sua missão era evitar que qualquer coisa além da Fronteira entrasse em Terrinoth. Era um trabalho parecido com o que fazíamos em Sundergard, mas lá era um pouco mais complicado, e os patrulheiros escolhidos eram só os melhores guerreiros das nossas terras.
            “A torre I capturou um goblin das tribos além da Fronteira.” Continuou Sir Shaldorth. “Ele estava tentando se infiltrar em Terrinoth para conseguir informações. Eles torturaram a criatura e ela confessou que estão planejando uma invasão liderada por ninguém mais ninguém menos que o próprio rei goblin, o infame Splig. Eles deram graças aos deuses por terem conseguido essa informação a tempo, pois se não seriam dizimados. Os goblins pretendiam se esgueirar por uma região ao sul da torre I, onde atravessariam o Rio Lotham com suas hordas e tomariam as duas torres do sul assim que baixassem a guarda. Os goblins não sabem que seu espião foi capturado, pois os patrulheiros o convenceram a escrever uma carta dizendo que está tudo correndo normalmente e enviar para seus superiores. Ao que tudo indica, as hordas virão em sete dias. Eles precisam de ajuda para fortalecer suas defesas e pegar os goblins de surpresa.”
            Eu mal conseguia respirar. Em toda minha vida, aquela era a primeira vez que um conflito estava acontecendo de verdade em Terrinoth. Bem, ele ainda iria acontecer, na verdade. Meu pai estava certo em relação aos rumores, mas não pude deixar de pensar que, se até meu pai já tinha ouvido falar, o que impedia os goblins de não terem alguém informando eles também.
            “Mas, senhor, por que está me contando tudo isso? Não é um assunto confidencial?” Perguntei, ainda atônito com as informações e com mil coisas passando por minha cabeça.
            “Regg, acho que você vai realizar seu sonho de conhecer Terrinoth um pouco antes do que pensava. Eu preciso mandar alguém competente de Sundergard para ajudar. Eu não posso ir, preciso supervisionar os garotos que estão sob minha responsabilidade. Os outros Cavaleiros também. Você é um dos mais velhos e mais experientes dentre os que ainda não são cavaleiros, então já mandei uma carta de volta ao governador dizendo que você irá.”
            “Espere, só uma pessoa? Como eu sozinho serei capaz de ajudar os patrulheiros?”
            “Mais pessoas estão vindo, você irá conhecê-las em breve. Além disso, os patrulheiros da torre II irão se deslocar para reforçar o sul da torre I. Você também não conhece os magos. Eles são muito poderosos e valem por dezenas de goblins com adagas. E os goblins não têm feiticeiros para ajudá-los, não agora que a magia se perdeu em Mennara. Esse não vai ser um combate de números, mas de inteligência. Os goblins estão confiantes, e vão quebrar a cara. Você aprenderá muito com essa viagem.”
            “Mas se a magia se perdeu em Mennara, como ainda temos magos lutando ao nosso lado?” Eu não estava entendendo, como ainda existiam pessoas capazes de usar magia, se as runas tinham sido tomadas pelos dragões?
            “Eu não sou a pessoa mais adequada para explicar esses assuntos de magia, Regg, mas já vi esses homens e mulheres em ação. Pelo que ouvi dizer, alguns conseguem retirar energia da runa restante que está com os elfos, por mais que ainda esteja longe, pois estudaram muito para desenvolver essa habilidade; enquanto outros têm como fonte de poder algum artefato. A questão é que apenas os que são feiticeiros natos não conseguem mais acessar a magia, por isso não precisamos nos preocupar tanto com raças tribais, que dependem totalmente de sua linhagem sanguínea para utilizar feitiços.”
            Sir Shaldorth esclareceu um pouco minha dúvida, mas eu ainda não acreditava que seríamos capazes de lutar contra hordas de goblins em menor número. As histórias diziam que eles lutavam até a morte e eram muito determinados. Mas a história acabara de ser contradita quando Sir Shaldorth contou sobre a traição de um deles, então eu preferi não mencionar isso.
            “Quando devo partir?” Foi apenas o que consegui dizer.
            “Amanhã de manhã um barco virá de Vynelvale. Ele trará dois de seus companheiros de viagem. Vocês imediatamente seguirão sozinhos até a torre I, pois não podemos chamar atenção. Terrinoth não está preparada para lidar com um conflito ainda, e não podemos arriscar que traidores levem informações para os goblins.”
            Assenti com a cabeça. As coisas ainda não estavam claras. Até algumas horas atrás, eu mal imaginava que um dia conheceria outro lugar que não fosse Riverwatch ou Sundergard, e agora eu estava partindo numa missão importantíssima para a Fronteira.
            Sir Shaldorth percebeu que eu precisava refletir, e pediu para que eu fosse descansar. Eu estava liberado do meu turno de vigia por hoje. Só os deuses sabiam quando eu faria um turno de vigia de novo.
            Eu saí do aposento de Sir Shaldorth e comecei a me dirigir para meu quarto. Mal tinha acordado e já precisava deitar de novo. Eu queria escrever uma carta para meus pais tranquilizando-os. Não iria falar sobre minha missão, apenas ia fingir que tudo continuava o mesmo.
            Quando abri a porta do meu quarto, tudo parecia escuro. A manhã lá fora estava clara, e o sol ainda deveria estar entrando pelas frestas da janela. Mas tudo estava tomado por uma sombra. A sombra começou a se mover, deslizando sobre as paredes e indo parar num ponto à frente da minha cama, diante de onde eu estava parado, ainda com a mão na maçaneta da porta, com medo de dar um passo adiante. Uma silhueta se formou diante de mim, e dessa vez eu pude perceber que não era apenas um vulto. Era uma forma feminina. Era possível distinguir seus cabelos longos, como se estivessem esvoaçando com a brisa. Porém, ainda era uma silhueta, e eu não podia ver seu rosto ou seus detalhes. Ela estava de joelhos no chão, e por um momento parecia que não sabia onde estava, e não tinha notado minha presença. Mas de repente ela moveu sua cabeça e, por mais que não pudesse ver seus olhos, eu sabia que estava olhando para mim. Eu não consegui mover nenhum músculo, e não sei quanto tempo fiquei naquela posição, apenas fitando a criatura à minha frente.
            De repente, tudo passou. O sol estava entrando novamente pelas frestas da janela, e as coisas estavam do jeito que eu tinha deixado no quarto. Não havia nenhum sinal da sombra. Dessa vez, eu sabia que não tinha sido só uma ilusão ou um pesadelo, ela era real, mas eu não sabia o que ela era.
Aquela foi a segunda vez que a vi.

sábado, 18 de maio de 2019

Amor, Morte & Robôs - Resenha

Amor, Morte & Robôs é uma animação original da Netflix que apresenta uma antologia de ficção científica que trata, basicamente, dos temas citados no próprio título, com ênfase em robôs.

Numa antologia, geralmente há episódios que você gosta e outros nem tanto. Mas aqui não é o caso. Os episódios curtos e diretos fazem com que mesmo as histórias mais chatas no papel despertem nossa curiosidade. É o tipo de série que você assiste do primeiro ao último episódio num só dia.

Enquanto "A Vantagem de Sonnie", "Sugador de Almas" e "A Guerra Secreta" usam de violência extrema, outros episódios, como "Os Três Robôs", "Quando o Iogurte Assumiu o Controle" e "Histórias Alternativas" se apoiam no humor negro para contar suas histórias, que nesse caso funciona também como crítica ao nosso modo de sociedade.

Meu episódio favorito foi "Para Além da Fenda de Áquila", mas "A Guerra Secreta" seria o episódio que eu escolheria se pudesse votar em expandir uma das dezoito histórias apresentadas nessa série.

Outra coisa legal dessa série, foi que descobri vários escritores que não conhecia ao pesquisar quem tinha escrito as histórias, como John Scalzi, Alastair Reynolds, Marko Kroos, Joe R. Landsdale, e isso me deu bastante histórias novas para ler.

sábado, 11 de maio de 2019

Kinderheim 511 - Episódio 3 (FINAL)


Com o terceiro episódio de Kinderheim 511, chegamos ao final do primeiro RPG gravado pelo Arbusto Errante. Confiram qual foi o destino do grupo que se uniu para impedir uma ameaça ainda maior que Hitler.

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Aguardem nossa próxima aventura!

As Lanças da Tartária [Parte 1]


Escrito por Malcolm Wheeler-Nicholson

Cascos de cavalo tinham pisoteado impérios até virarem poeira. Nenhum homem sabe que forças invisíveis moveram continuamente as vastas tribos de nômades asiáticos até transbordarem a Alta Tartária e inundarem a civilização. Mesmo agora, o estrondo dos cascos das hordas de Átila ainda ecoava pelos séculos. O Império Romano tinha sido esmagado pelos gritos dos cavaleiros nômades e pelo relinchar dos pôneis tártaros.
Desde então, novas nações nasceram e morreram. Desde então, um fanático arrieiro tinha saído do deserto e dito frases ardentes em Meca, e suas palavras tinham acendido a chama do Islã. Austeros muçulmanos galoparam pelas terras desérticas punindo os infiéis com fogo e espada. Cavalos árabes de pernas delgadas carregaram os seguidores de Maomé e a cimitarra do Islã. Mas, bem antes disso, o luxo e a riqueza obtidos pelos conquistadores tinha gerado indolência e preguiça. Os cavalos árabes de pele sedosa perderam seu vigor.
Mas nos planaltos da Ásia, os pôneis tártaros ainda batalhavam contra os severos ventos do Gobi e lutavam por cada pedaço de grama no território.
Nos últimos tempos, um rumor tinha começado a se espalhar pelo Islã. Homens lançavam olhares preocupados ao Portão Sungário, a passagem por onde todas as hordas nômades tinham vindo da Alta Ásia. O Xá do poderoso Império Persa riu quando seus conselheiros lhe lembraram de Átila, o Huno, e falaram de um novo Flagelo de Deus, um certo Genghis Khan, cujo número de guerreiros só era superado pelo número de folhas nas árvores ou pelo número de grãos de areia das praias, e cujas hordas de cavalos preenchiam as planícies até o longínquo horizonte.
E, ainda assim, o Xá riu, esquecendo dos grandes impérios que tinham se dissolvido em pó sob os cascos das hordas de cavalos nômades.
Um vento frio soprava na Alta Tartária. Houve uma chuva de meteoros naquela noite, e os habitantes da cidade muçulmana observaram a bola de fogo que pairou por quase um minuto sobre o topo da mais alta torre da grande mesquita.
“Isso certamente significa que o mal está por vir!” sussurraram entre eles.
Inconsciente dos sussurros, despercebido pelos habitantes e imperturbado pelos portentos, um cavaleiro solitário percorria o caminho até o portão oeste de Otrar. Como o sol já havia se posto, o Capitão do Portão já tinha fechado a entrada da cidade, e o viajante solitário tinha pouca esperança de entrar naquela noite, a não ser que algum grupo de viajantes ou alguém importante demandasse passagem. Nesse caso, o viajante solitário esperava entrar despercebido entre a multidão, uma tarefa não muito fácil. Ele era mais alto que a maioria dos habitantes do poderoso Império Persa, mais alto e de pele mais clara, o que não era surpreendente, já que tinha vindo de terras distantes do oeste. Um sobretudo desgastado sobre o qual estava brasonada uma cruz, sua espada longa e fina, e a cota de malha protegendo seu forte peitoral, seus ombros, flancos e coxas, mostravam que ele era um dos Cruzados que ainda mantinham uma base de operações no limite da costa da Terra Santa. Alan de Beaufort tinha toda a força de um lobo, e, como um lobo, ele tinha visto mais batalhas do que merecia desde que deixara a Normandia. Amarga tinha sido sua jornada, mesmo na própria Terra Santa. Seu senhor tinha lhe traído e lhe forçado a procurar abrigo entre os inimigos da Vera Cruz. Impelido ainda mais ao leste, atormentado e em perigo por causa dos muçulmanos, ele se encontrava, enfim, diante dos portões de Otrar, o posto avançado do poderoso Império Kharesmiano, que se estendia da Índia até Bagdá, e do Mar de Aral até o Golfo Pérsico. Homens contavam estranhas histórias sobre um tal Preste João, que diziam ser o rei de um misterioso povo cristão nos planaltos da Tartária. Era em direção a esse nebuloso santuário que o cavaleiro cristão, Alan de Beaufort, estava a caminho.
Desmontando, ele se pôs nas sombras de uma árvore perto do portão e observou as duas tochas queimarem e crepitarem nos muros, suas chamas refletindo no elmo da sentinela que andava para frente e para trás sobre os portões. Por trás do muro situava-se uma populosa cidade, na qual ele poderia se esconder, e encontrar comida e abrigo. Fora dos muros, havia a paisagem desolada infestada de bandos saqueadores.
***
         Tanto homem quanto cavalo estavam cansados, mas ambos ergueram as cabeças quando ouviram algo se agitar na escuridão atrás deles, um barulho que aumentou de volume e se transformou numa confusão de pés humanos e patas de animais. Alguém estava procurando entrar na cidade, e Alan pôs seu pé sobre o estribo e montou no seu cavalo, guiando-o de volta às sombras enquanto as formas de muitos homens a cavalo saiam da escuridão e se aproximavam do portão.
         Na luz fraca das tochas, revelou-se uma caravana de mercadores, homens baixos, de olhos pequenos e com armadura pesada, cavalgando pôneis peludos e conduzindo muitos animais bem carregados. Mercadores da Tartária, evidentemente, trazendo peles e prata para comercializar, tapetes e sedas. Seu líder era um homem mais alto que seus companheiros, com olhos aguçados como uma águia e uma perspicácia incomum num mercador. Ele pedia admissão numa voz gutural que carregava um tom de autoridade. O Capitão do Portão, reluzindo o vermelho em sua armadura prateada, inclinou-se arrogantemente sobre sua cimitarra sobre o muro e o questionou.
         Alan estava muito longe para ouvir as perguntas e respostas, mas, evidentemente, estavam se entendendo bem, pois houve uma agitação nas torres do portão e os dois enormes portais lentamente se afastaram para trás, revelando um amontoado de lanceiros na entrada.
         A caravana de uns vinte mercadores e o dobro de animais começou a se movimentar. Alan não perdeu tempo, silenciosamente se infiltrando entre os cinco ou seis viajantes que compunham a traseira do grupo. Com eles, ele entrou nos portões. Mal seu cavalo colocou os cascos sobre as lajes de pedra da rua, os portões atrás dele se fecharam com um rangido. Por um momento, ele teve a sensação de estar preso e se amaldiçoou por entrar nessa cercania perigosa. Sua mão direita baixou até o cabo de sua espada na bainha de couro, e com aquilo foi capaz de recuperar sua confiança. Enquanto isso, seus olhos percorriam o local, notando o amontoado de lanceiros revestidos de aço que ficavam para trás, e percebendo outro grupo que marchava de uma rua lateral e tomava posição na frente da caravana. Isso era inquietante o suficiente por si só, e ele desejou sinceramente encontrar um local onde pudesse se esgueirar por uma rua lateral e se distanciar discretamente. Mas seu desejo foi condenado a não se concretizar quando, repentinamente, um lanceiro se colocou a seu lado e uma fila de homens armados se alinhou do início ao fim da caravana, cercando-a como um muro de aço.
         Havia algo sinistro naquilo. Alan, bastante familiar com o perigo para não reconhecê-lo, sabia institivamente que essa recepção incomum de uma caravana de mercadores era um sinal ruim. Ao brilho das tochas carregadas pelos lanceiros, ele estudou os rostos de seus companheiros, mas os mercadores baixos e de olhos pequenos conduziam adiante impassíveis, não demonstrando sinal algum de medo.
         O líder do corpo de lanceiros que cercava a caravana saiu da frente da coluna, abaixando sua cabeça para não bater nas varandas suspensas. Seu cavalo, um garanhão árabe de pelagem escura como carvão, bufava e gemia enquanto andava sobre as pedras do pavimento. O homem de olhar insolente era um turco seljúcida, de peito inflado e arrogante, usando uma joia em seu turbante, sua lâmina damascena em mãos. Alan puxou as dobras de sua capa mais próximas de si, pois os turcos seljúcidas não eram amigos dos Cruzados. O capitão dos guardas se aproximava cada vez mais, analisando atentamente o rosto de cada viajante. Ele estava agora ao lado de Alan, seus olhos aguçados fitando-o de cima a baixo enquanto o Cruzado disfarçado se arqueava sobre sua sela. Por um breve segundo, Alan achou que o guarda iria seguir em frente, mas sua esperança se desvaneceu quando o oficial turco moveu seu cavalo, se inclinou na sela e sussurrou alguma ordem para os guardas mais próximos, apontando para o alto cavaleiro.
         Os guardas se aproximaram, observando com renovado interesse o estranho em meio a eles. Mais guardas apareceram e reforçaram a fila naquele ponto. O capitão turco, após lançar outro olhar ao Cruzado, dirigiu-se à frente da coluna. A longa caravana passava com seus guardas por uma rua estreita, cujas varandas suspensas quase tocavam suas cabeças. Entre elas, Alan podia ver as estrelas brilhando friamente no céu claro. Ele sabia que ordens especiais de observá-lo tinham sido dadas aos guardas, e, sem chamar atenção, ele estudava cada ruela e cada beco enquanto cavalgava.
***
         Várias centenas de metros à frente de Alan, ele viu o tamanho e a vastidão da cidadela, e soube que era em direção a essa fortaleza que os prisioneiros estavam sendo levados. Ele sabia muito bem que isso era um presságio do mal, um mal que se estampava sobre ele enquanto as ruas se alargavam e eles passavam perto de um muro isolado. Um gemido veio de algum lugar lá em cima. Olhando para cima, Alan viu vários ganchos pendurados nos muros, ganchos como aqueles nos quais os carniceiros penduram suas carcaças. E, como se fosse uma carcaça, lá estava pendurado o corpo nu de um homem, suspenso cruelmente em meio ao ar, seus olhos entreabertos e sangue pingando das pontas de aço que perfuravam seu corpo.
         Tal visão fortaleceu a resolução de Alan. Por que as autoridades dessa cidade fronteiriça capturariam uma caravana de mercadores, ele não sabia; mas, sendo a justiça de Maomé do jeito que era, e já sendo bem conhecida a crueldade e rapacidade dos governadores do Xá, ele decidiu arriscar uma morte rápida ao invés de seguir estupidamente como uma ovelha em direção ao abatedouro.
         Eles tinham agora passado o grande muro isolado e estavam novamente na passagem estreita das casas. À direita de Alan estavam dois ou três dos baixos mercadores de olhos pequenos. Bem silenciosamente, ele adiantou seu cavalo à frente dele, e começou lentamente a forçá-lo em direção à fila de lanceiros no flanco. Sua troca de posição foi tão discreta, que nem mesmo olharam para ele. À sua frente, agigantava-se o portão negro da cidadela, a uns cem passos. Entre ele e a entrada sombria, uma rua levava a algum lugar à direita. Era por esse caminho que ele planejava fazer sua fuga. Sob seu casaco, ele começou a deslizar sua espada da bainha, levantando-a centímetro a centímetro, cada vez mais e mais alta, com suas mãos na fria lâmina de aço. Faltavam poucos metros para a esquina. Ele tinha retirado três terços da sua espada da bainha, o punho dela descansando sobre seu ombro debaixo do casaco. No mesmo momento, o Capitão da Guarda começou a sair da frente da coluna, Alan agarrou a espada com sua mão direita, curvou-se sobre a sela e equilibrou-se, tenso como um gavião prestes a atacar.
         Os olhos aguçados do capitão turco entenderam a situação num instante. Ele gritou aos guardas, que marcharam até ele a pé, mas Alan já tinha sacado sua lâmina com um zunido seco e austero, esporeando seu cavalo e se dirigindo ao lanceiro mais próximo. Sua lâmina penetrou o casaco do homem e atingiu a articulação do seu ombro. A investida do cavalo fez os outros lanceiros recuarem, mas, forçados pelos gritos do capitão, eles rapidamente se recuperaram e começaram a atacar o intrépido cavaleiro acima deles. Pontas de lanças famintas se lançavam em direção ao Cruzado. Da primeira, ele desviou; na segunda, ele golpeou, cortando o punho do seu portador com um só movimento. Ele estava agora na entrada da rua lateral, lutando como um cervo cercado por uma matilha de lobos. Outros guardas se juntaram ao combate, até haver uma pressão contínua e um bando de homens em volta dele. O capitão turco estava forçando seu cavalo através de seus homens para chegar perto do Cruzado, sua cimitarra refletindo a cor vermelha das luzes das tochas enquanto ele procurava uma abertura. Alan se ergueu em seus estribos. Sua espada oscilava ao seu redor como um círculo de aço. Ele gritava e golpeava. O capitão turco se aproximava com seu cavalo. De repente, Alan se inclinou bruscamente para a esquerda, focando diretamente a garganta do homem. O turco se jogou para trás na sela, desviando por pouco do golpe vicioso que, ainda assim, atingiu seu ombro, forçando-o a soltar sua lâmina.
         Com incrível rapidez, Alan se recuperou, golpeando e cortando o círculo de lanceiros ao seu redor, até enfim se livrar da multidão. Com um movimento final em direção a um lanceiro alto que estava se empenhando em machucar seu cavalo, ele livrou seu animal do combate e galopou em direção à rua estreita.
         Entre os gritos e a confusão, o barulho do aço colidindo com aço e o ruído dos casos dos cavalos, a rua repentinamente ganhou vida. Janelas se abriam; portas se escancaravam. Pessoas se apinhavam nas varandas e na rua. Em um segundo, o quarteirão estava em alvoroço.
***
         Com um desespero repentino, Alan viu uma sombra maciça bloqueando o caminho à sua frente, e percebeu tarde demais que tinha fugido para uma rua sem saída. Atrás dele, os guardas estavam em perseguição, avançando rapidamente em meio às multidões que preenchiam o local. Do outro lado da rua, mulheres gritavam nas varandas, apontando para ele. Luzes estavam se aproximando e as tochas de seus perseguidores ficavam visíveis, iluminando a ponta de suas lanças. Uma flecha zuniu pelo ar e se enterrou na moldura de madeira da varanda a uns quinze centímetros dele. Ele virou seu cavalo para enfrentar seus perseguidores, determinado a morrer bravamente, se necessário. Eles avançaram como uma matilha de lobos guiados pelo cheiro, e estavam agora a vinte passos, um amontoado sólido de homens armados ocupando todo o espaço da rua. Diante dele, havia um muro de aço, e, atrás dele, um muro de pedra! Alan inclinou a cabeça para trás e riu, atirando sua lâmina para cima e pegando ela levemente pelo punho, enquanto se ajeitava mais firme na sela. Acima dele, assomava a escuridão de uma varanda, suas vigas de suporte pouco mais de um metro sobre sua cabeça. Nela, reluzia em contraste com a escuridão uma figura que ele presumiu ser uma mulher. Sua voz chegou até ele.
         “Suba, Cruzado, suba!” disse a voz em Latim, uma língua que era como a sua, e ele olhou para cima, assustado. As pontas famintas das lanças estavam a poucos passos de distância. Uma figura coberta de aço saltou em direção ao seu cavalo. Ele a cortou rapidamente e riu de novo ao desviar da investida de uma lança.
         De repente, ele saltou dos estribos e, com a mão no punho da espada, ficou de pé sobre a sela. Desse ponto de vantagem, ele pulou para a varanda ao mesmo tempo em que seu cavalo foi ao chão com um relincho. Uma flecha atingiu o ponto entre seus braços esticados. Com grande esforço, ele se puxou para cima e, num segundo, saltou sobre o parapeito da varanda.
         Gritos altos vinham lá de baixo. Homens começaram a bater com suas lanças na porta. Com a espada debaixo do braço, Alan parou por um segundo, fitando a figura diante dele. A mulher gesticulou e ele a seguiu pela longa e estreita entrada, indo parar num cômodo de teto baixo, banhado numa luz suave e rosada que se projetava de uma lâmpada de prata pendurada por correntes. Ele olhou ao seu redor, vislumbrando os maravilhosos tapetes e divãs, as cortinas de seda, e os objetos de jade e marfim. Então, olhou para a mulher, e viu que ela era apenas uma moça de dezoito verões, com um rosto soberbo sustentado por um pescoço delgado.
         “Devo agradecê-la por sua ajuda”, ele disse solenemente, “mas não posso ficar aqui e colocá-la em perigo. Quem é você?” ele perguntou, curioso.
         “Não importa quem sou, mas venha”, ela sussurrou, levando-o ao outro lado do cômodo, a uma porta estreita atrás de uma cortina de seda. Quando ela a abriu, Alan pôde notar o frescor e a palidez de sua pele, e a beleza de seu andar, decidindo prontamente que não era uma mulher muçulmana, mas, sem dúvida, uma mulher nobre de uma raça próxima a sua. Uma pequena cruz grega dourada balançava no pescoço dela, convencendo-o que estava certo. Mas não havia tempo para perguntas, pois os gritos e os golpes na porta ficavam cada vez mais altos, e comandava-se imperativamente que abrissem em nome da lei.
         A garota abriu a pequena porta, revelando um lance de degraus que subiam para a escuridão. Sem uma palavra, ela agarrou sua mão e o levou para cima. Ele a seguiu, tropeçando nos degraus estreitos, estranhamente empolgado com o contato da mão delgada com seu punho peludo. Em alguns segundos, chegaram ao topo, e a garota abriu outra porta que dava ao teto.
         Ela apontou para os telhados planos e extensos.
         “Vá!” ela disse, “esconda-se.”
         Ele se endireitou e balançou sua cabeça teimosamente.
         “Não posso te deixar enfrentar a matilha de lobos sozinha”, ele disse calmamente.
         A cabeça dela se inclinou de leve, ouvindo os gritos que aumentavam lá embaixo. Os gritos pararam de repente quando a porta da rua foi derrubada, e o ruído de passos podia ser ouvido subindo a escada.
         “Não, não”, ela sussurrou ansiosamente, “eles não ousariam me machucar. Vá, te imploro!”
         “Tudo bem, então”, ele disse. “Mas jure pela Vera Cruz que nenhum mal recairá sobre ti.”
         “Eu juro, sobre a Vera Cruz, vá, antes que seja tarde demais!” ela sussurrou freneticamente, enquanto a casa abaixo deles se enchia com os gritos dos perseguidores.
         Mas ele ainda hesitou.
         “Não sei seu nome, nem como te verei de novo”, ele contestou.
         “Eu me chamo Helene, a filha do Estratego, e – e se por acaso não conseguir fugir esta noite, venha ao amanhecer até essa porta e bata três vezes”, ela disse sem fôlego, e puxando sua túnica branca consigo, ela se foi.

domingo, 5 de maio de 2019

Os Cavaleiros de Riverwatch [1: Alianças/Amizades] - Parte 1


            Uma chuva torrencial despencava sobre a fortaleza de Sundergard, umedecendo as antigas rochas que constituíam seus muros e paredes, e encharcando as esparsas construções de madeira, despedaçadas, que foram improvisadas há tempos, quando era necessário dar abrigo a cada vez mais soldados que vinham defender uma das entradas do grande reino de Terrinoth em tempos sombrios.
            Agora, a fortaleza gerenciada pela cidade livre de Riverwatch, pouco mais ao norte do Rio Morshan, era mantida com recursos mínimos. Os inúmeros soldados que se amontoaram dentro dela nos últimos anos estavam todos mortos, e dos poucos que restaram, a grande maioria voltou à Riverwatch para serviços mais imediatos.
            “Mal me lembro do último inverno tão chuvoso. Você provavelmente nem tinha nascido, Regg”, o homem ao meu lado gritou para ser ouvido. Eu já tinha percebido sua chegada bem antes de ouvir sua voz, mas o barulho da chuva caindo sobre o rio logo atrás de nós fazia com que fosse difícil entender suas palavras.
            Eu olhei para Sir Shaldorth, um dos seletos Cavaleiros de Riverwatch, e seus longos cabelos e barba negros encharcados. Seu olhar pairava sobre a densa floresta à nossa frente. Se o dia estivesse claro, da altura que estávamos, seria possível ver os picos da grande cidade élfica de Lithelin no horizonte. Mas hoje, mal conseguíamos ver além da base das Montanhas do Desespero, ao oeste do que os elfos chamavam de Floresta Profunda.
            “Será que um dia terei oportunidade de conhecer um deles, senhor?” Perguntei enquanto olhava na mesma direção que meu mestre. Sir Shaldorth treinava a mim e mais alguns garotos que estavam vivendo há dois anos em Sundergard, para que um dia apenas um de nós se tornasse um Cavaleiro de Riverwatch. Sim, apenas um seria escolhido. Essa era a tradição. Os Cavaleiros tinham muitos segredos, e não era qualquer um que poderia fazer parte de seu círculo interno.
            “Eu vi um elfo pela primeira vez quando tinha mais de vinte anos, Regg. Você tem apenas dezessete. Quando fizer dezoito, ano que vem, poderá sair em missões além da fortaleza, e com certeza conhecerá criaturas de todo tipo.”
            Tenho ansiado por tal momento desde criança. Crescendo em Riverwatch, os únicos rostos não humanos que eu via eram os dos Orcs. Nossa cidade os acolheu, de certa forma, depois da Terceira Escuridão, como uma forma de agradecimento pela ajuda de suas tribos contra a invasão draconiana. Bem, esse não foi o único motivo. Como qualquer coisa que ocorre em Terrinoth, a política sempre é um fator importantíssimo. Riverwatch é uma cidade livre, portanto, não é muito bem vista pelo Conselho dos Treze, o conjunto de barões que governa o reino de Terrinoth. A acolhida dos Orcs foi uma maneira de mostrar aos barões que nossa cidade tinha um mecanismo a mais de defesa caso eles quisessem tomá-la. Ninguém gosta de lutar contra aquelas criaturas enormes.
            “Troque de lugar comigo. Você já está vigiando há horas, vá descansar um pouco”, disse Shaldorth. Assenti agradecido e comecei a me dirigir em direção à escada. Mas eu gostava de vigiar. Talvez porque, na realidade, não houvesse muitos perigos por ali. Pelo menos não atualmente.
            Enquanto descia as escadas da fortaleza por um corredor circular escuro, acendi as tochas nas paredes. Era dia, mas o tempo estava fechado desde que eu acordara naquela manhã, dando uma sensação de que uma longuíssima noite pairava sobre o mundo. Aquilo se somava à depressão no coração e nos olhos de todos os soldados da fortaleza. Era algo bem perceptível, eu podia perceber cada vez que cruzava com um deles no caminho para meu quarto.
            Embora já tenha se passado quase um século desde a Terceira Escuridão, as coisas não têm estado muito boas em Terrinoth. Tanto as cidades livres como as cidades do reino têm sofrido com falta de trabalhadores e soldados. As fortalezas acabaram ficando relativamente abandonadas, quando comparadas aos tempos prósperos. Mesmo após a Primeira e a Segunda Escuridão, Terrinoth foi capaz de se reconstruir e se recuperar rapidamente, mas não desta vez.
            Não se falava muito sobre isso, mas eu estudava e lia bastante. Sempre achei que o fator que mais influenciava nossa decadência era o roubo da magia de nossas terras. Quando os dragões vieram, só os deuses sabem de onde, roubaram várias de nossas runas, e das que restaram, nenhuma estava em Terrinoth. Os elfos tinham uma, e as outras ninguém sabia onde estavam. Vez ou outra surgiam intrigas e conspirações que afirmavam que alguma cidade livre estava mantendo uma runa escondida, mas, no fim das contas, todos sabiam que era mentira, pois não se sentia mais a magia. Se houvesse uma runa por perto, os magos sentiriam, disso não restava dúvida. Provavelmente, até os humanos mais comuns poderiam senti-la.
            Após a fuga dos dragões e as grandes perdas de todas as raças que lutaram juntas pela honra de nosso mundo, os barões, reunidos com os líderes das cidades livres, concordaram em se ajudar para reconstruir as cidades e reestabelecer a dominância do reino sobre o continente. Deveríamos evitar guerras e conflitos. Na verdade, era o que todas as raças estavam fazendo, pois todos estavam enfrentando dificuldades. Mas, eventualmente, as coisas iriam normalizar e voltaríamos a brigar por território, dinheiro e poder. Eu já lera muitos livros de história, eu sabia muito bem que era assim.
            Como estávamos em número reduzido em Sundergard, todos tínhamos quartos separados. Eu sempre ficava imaginando como era antigamente, dizem que havia quartos que abrigavam até dez soldados.
            Quando entrei no meu quarto e acendi o lustre pendurado no teto, vi a água da chuva escorrendo pela madeira na janela. Joguei um pedaço de pano no chão para evitar que ela se espalhasse pelo quarto. Resolvi me deitar e descansar, pois após o jantar eu certamente teria que fazer mais um turno de vigia, e estar atento era importante, por mais que eu dificilmente fosse ver alguma coisa fora do comum. Ninguém tem visto há décadas.
            Retirei a armadura de couro que eu sempre usava apenas por questões de formalidade. Deixei minha espada descansar também, ao lado da minha cama, e apaguei as velas do lustre, deixando apenas uma acesa para não ficar completamente escuro.
            Não demorou muito para que eu adormecesse. Foi um sono sem sonhos, e quando acordei com o barulho do vento assoviando, bem mais forte do que durante a tarde, percebi que ainda estava chovendo, e a água tinha chegado a molhar os lençóis que me cobriam. Notei que eu estava tremendo de frio.
            Fiz o primeiro movimento para me levantar, já pensando em vestir minha armadura e me apressar para o jantar. Porém, o movimento simplesmente não se concretizou. Foi quando eu vi, no canto no meu quarto, uma forma sombria. Era uma silhueta, mas eu não conseguia ver nenhum traço, apenas sua forma sólida. Em outras circunstâncias, eu diria que alguém tinha entrado no meu quarto, qualquer que fosse o motivo. Mas a forma simplesmente evaporou após alguns segundos, se juntando às sombras que a única vela do lustre projetava na parede.
            Eu acalmei minha respiração ofegante e finalmente consegui me mover, limpando o suor que escorria na minha testa.
            Aquela foi a primeira vez que a vi.