domingo, 5 de maio de 2019

Os Cavaleiros de Riverwatch [1: Alianças/Amizades] - Parte 1


            Uma chuva torrencial despencava sobre a fortaleza de Sundergard, umedecendo as antigas rochas que constituíam seus muros e paredes, e encharcando as esparsas construções de madeira, despedaçadas, que foram improvisadas há tempos, quando era necessário dar abrigo a cada vez mais soldados que vinham defender uma das entradas do grande reino de Terrinoth em tempos sombrios.
            Agora, a fortaleza gerenciada pela cidade livre de Riverwatch, pouco mais ao norte do Rio Morshan, era mantida com recursos mínimos. Os inúmeros soldados que se amontoaram dentro dela nos últimos anos estavam todos mortos, e dos poucos que restaram, a grande maioria voltou à Riverwatch para serviços mais imediatos.
            “Mal me lembro do último inverno tão chuvoso. Você provavelmente nem tinha nascido, Regg”, o homem ao meu lado gritou para ser ouvido. Eu já tinha percebido sua chegada bem antes de ouvir sua voz, mas o barulho da chuva caindo sobre o rio logo atrás de nós fazia com que fosse difícil entender suas palavras.
            Eu olhei para Sir Shaldorth, um dos seletos Cavaleiros de Riverwatch, e seus longos cabelos e barba negros encharcados. Seu olhar pairava sobre a densa floresta à nossa frente. Se o dia estivesse claro, da altura que estávamos, seria possível ver os picos da grande cidade élfica de Lithelin no horizonte. Mas hoje, mal conseguíamos ver além da base das Montanhas do Desespero, ao oeste do que os elfos chamavam de Floresta Profunda.
            “Será que um dia terei oportunidade de conhecer um deles, senhor?” Perguntei enquanto olhava na mesma direção que meu mestre. Sir Shaldorth treinava a mim e mais alguns garotos que estavam vivendo há dois anos em Sundergard, para que um dia apenas um de nós se tornasse um Cavaleiro de Riverwatch. Sim, apenas um seria escolhido. Essa era a tradição. Os Cavaleiros tinham muitos segredos, e não era qualquer um que poderia fazer parte de seu círculo interno.
            “Eu vi um elfo pela primeira vez quando tinha mais de vinte anos, Regg. Você tem apenas dezessete. Quando fizer dezoito, ano que vem, poderá sair em missões além da fortaleza, e com certeza conhecerá criaturas de todo tipo.”
            Tenho ansiado por tal momento desde criança. Crescendo em Riverwatch, os únicos rostos não humanos que eu via eram os dos Orcs. Nossa cidade os acolheu, de certa forma, depois da Terceira Escuridão, como uma forma de agradecimento pela ajuda de suas tribos contra a invasão draconiana. Bem, esse não foi o único motivo. Como qualquer coisa que ocorre em Terrinoth, a política sempre é um fator importantíssimo. Riverwatch é uma cidade livre, portanto, não é muito bem vista pelo Conselho dos Treze, o conjunto de barões que governa o reino de Terrinoth. A acolhida dos Orcs foi uma maneira de mostrar aos barões que nossa cidade tinha um mecanismo a mais de defesa caso eles quisessem tomá-la. Ninguém gosta de lutar contra aquelas criaturas enormes.
            “Troque de lugar comigo. Você já está vigiando há horas, vá descansar um pouco”, disse Shaldorth. Assenti agradecido e comecei a me dirigir em direção à escada. Mas eu gostava de vigiar. Talvez porque, na realidade, não houvesse muitos perigos por ali. Pelo menos não atualmente.
            Enquanto descia as escadas da fortaleza por um corredor circular escuro, acendi as tochas nas paredes. Era dia, mas o tempo estava fechado desde que eu acordara naquela manhã, dando uma sensação de que uma longuíssima noite pairava sobre o mundo. Aquilo se somava à depressão no coração e nos olhos de todos os soldados da fortaleza. Era algo bem perceptível, eu podia perceber cada vez que cruzava com um deles no caminho para meu quarto.
            Embora já tenha se passado quase um século desde a Terceira Escuridão, as coisas não têm estado muito boas em Terrinoth. Tanto as cidades livres como as cidades do reino têm sofrido com falta de trabalhadores e soldados. As fortalezas acabaram ficando relativamente abandonadas, quando comparadas aos tempos prósperos. Mesmo após a Primeira e a Segunda Escuridão, Terrinoth foi capaz de se reconstruir e se recuperar rapidamente, mas não desta vez.
            Não se falava muito sobre isso, mas eu estudava e lia bastante. Sempre achei que o fator que mais influenciava nossa decadência era o roubo da magia de nossas terras. Quando os dragões vieram, só os deuses sabem de onde, roubaram várias de nossas runas, e das que restaram, nenhuma estava em Terrinoth. Os elfos tinham uma, e as outras ninguém sabia onde estavam. Vez ou outra surgiam intrigas e conspirações que afirmavam que alguma cidade livre estava mantendo uma runa escondida, mas, no fim das contas, todos sabiam que era mentira, pois não se sentia mais a magia. Se houvesse uma runa por perto, os magos sentiriam, disso não restava dúvida. Provavelmente, até os humanos mais comuns poderiam senti-la.
            Após a fuga dos dragões e as grandes perdas de todas as raças que lutaram juntas pela honra de nosso mundo, os barões, reunidos com os líderes das cidades livres, concordaram em se ajudar para reconstruir as cidades e reestabelecer a dominância do reino sobre o continente. Deveríamos evitar guerras e conflitos. Na verdade, era o que todas as raças estavam fazendo, pois todos estavam enfrentando dificuldades. Mas, eventualmente, as coisas iriam normalizar e voltaríamos a brigar por território, dinheiro e poder. Eu já lera muitos livros de história, eu sabia muito bem que era assim.
            Como estávamos em número reduzido em Sundergard, todos tínhamos quartos separados. Eu sempre ficava imaginando como era antigamente, dizem que havia quartos que abrigavam até dez soldados.
            Quando entrei no meu quarto e acendi o lustre pendurado no teto, vi a água da chuva escorrendo pela madeira na janela. Joguei um pedaço de pano no chão para evitar que ela se espalhasse pelo quarto. Resolvi me deitar e descansar, pois após o jantar eu certamente teria que fazer mais um turno de vigia, e estar atento era importante, por mais que eu dificilmente fosse ver alguma coisa fora do comum. Ninguém tem visto há décadas.
            Retirei a armadura de couro que eu sempre usava apenas por questões de formalidade. Deixei minha espada descansar também, ao lado da minha cama, e apaguei as velas do lustre, deixando apenas uma acesa para não ficar completamente escuro.
            Não demorou muito para que eu adormecesse. Foi um sono sem sonhos, e quando acordei com o barulho do vento assoviando, bem mais forte do que durante a tarde, percebi que ainda estava chovendo, e a água tinha chegado a molhar os lençóis que me cobriam. Notei que eu estava tremendo de frio.
            Fiz o primeiro movimento para me levantar, já pensando em vestir minha armadura e me apressar para o jantar. Porém, o movimento simplesmente não se concretizou. Foi quando eu vi, no canto no meu quarto, uma forma sombria. Era uma silhueta, mas eu não conseguia ver nenhum traço, apenas sua forma sólida. Em outras circunstâncias, eu diria que alguém tinha entrado no meu quarto, qualquer que fosse o motivo. Mas a forma simplesmente evaporou após alguns segundos, se juntando às sombras que a única vela do lustre projetava na parede.
            Eu acalmei minha respiração ofegante e finalmente consegui me mover, limpando o suor que escorria na minha testa.
            Aquela foi a primeira vez que a vi.

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