Uma chuva torrencial despencava
sobre a fortaleza de Sundergard, umedecendo as antigas rochas que constituíam
seus muros e paredes, e encharcando as esparsas construções de madeira,
despedaçadas, que foram improvisadas há tempos, quando era necessário dar
abrigo a cada vez mais soldados que vinham defender uma das entradas do grande reino
de Terrinoth em tempos sombrios.
Agora, a fortaleza gerenciada pela
cidade livre de Riverwatch, pouco mais ao norte do Rio Morshan, era mantida com
recursos mínimos. Os inúmeros soldados que se amontoaram dentro dela nos
últimos anos estavam todos mortos, e dos poucos que restaram, a grande maioria
voltou à Riverwatch para serviços mais imediatos.
“Mal me lembro do último inverno tão
chuvoso. Você provavelmente nem tinha nascido, Regg”, o homem ao meu lado
gritou para ser ouvido. Eu já tinha percebido sua chegada bem antes de ouvir
sua voz, mas o barulho da chuva caindo sobre o rio logo atrás de nós fazia com
que fosse difícil entender suas palavras.
Eu olhei para Sir Shaldorth, um dos seletos
Cavaleiros de Riverwatch, e seus longos cabelos e barba negros encharcados. Seu
olhar pairava sobre a densa floresta à nossa frente. Se o dia estivesse claro,
da altura que estávamos, seria possível ver os picos da grande cidade élfica de
Lithelin no horizonte. Mas hoje, mal conseguíamos ver além da base das
Montanhas do Desespero, ao oeste do que os elfos chamavam de Floresta Profunda.
“Será que um dia terei oportunidade
de conhecer um deles, senhor?” Perguntei enquanto olhava na mesma direção que
meu mestre. Sir Shaldorth treinava a mim e mais alguns garotos que estavam
vivendo há dois anos em Sundergard, para que um dia apenas um de nós se
tornasse um Cavaleiro de Riverwatch. Sim, apenas um seria escolhido. Essa era a
tradição. Os Cavaleiros tinham muitos segredos, e não era qualquer um que poderia
fazer parte de seu círculo interno.
“Eu vi um elfo pela primeira vez
quando tinha mais de vinte anos, Regg. Você tem apenas dezessete. Quando fizer
dezoito, ano que vem, poderá sair em missões além da fortaleza, e com certeza
conhecerá criaturas de todo tipo.”
Tenho ansiado por tal momento desde
criança. Crescendo em Riverwatch, os únicos rostos não humanos que eu via eram
os dos Orcs. Nossa cidade os acolheu, de certa forma, depois da Terceira
Escuridão, como uma forma de agradecimento pela ajuda de suas tribos contra a
invasão draconiana. Bem, esse não foi o único motivo. Como qualquer coisa que
ocorre em Terrinoth, a política sempre é um fator importantíssimo. Riverwatch é
uma cidade livre, portanto, não é muito bem vista pelo Conselho dos Treze, o
conjunto de barões que governa o reino de Terrinoth. A acolhida dos Orcs foi
uma maneira de mostrar aos barões que nossa cidade tinha um mecanismo a mais de
defesa caso eles quisessem tomá-la. Ninguém gosta de lutar contra aquelas
criaturas enormes.
“Troque de lugar comigo. Você já
está vigiando há horas, vá descansar um pouco”, disse Shaldorth. Assenti
agradecido e comecei a me dirigir em direção à escada. Mas eu gostava de
vigiar. Talvez porque, na realidade, não houvesse muitos perigos por ali. Pelo
menos não atualmente.
Enquanto descia as escadas da
fortaleza por um corredor circular escuro, acendi as tochas nas paredes. Era
dia, mas o tempo estava fechado desde que eu acordara naquela manhã, dando uma
sensação de que uma longuíssima noite pairava sobre o mundo. Aquilo se somava à
depressão no coração e nos olhos de todos os soldados da fortaleza. Era algo
bem perceptível, eu podia perceber cada vez que cruzava com um deles no caminho
para meu quarto.
Embora já tenha se passado quase um
século desde a Terceira Escuridão, as coisas não têm estado muito boas em
Terrinoth. Tanto as cidades livres como as cidades do reino têm sofrido com
falta de trabalhadores e soldados. As fortalezas acabaram ficando relativamente
abandonadas, quando comparadas aos tempos prósperos. Mesmo após a Primeira e a
Segunda Escuridão, Terrinoth foi capaz de se reconstruir e se recuperar
rapidamente, mas não desta vez.
Não se falava muito sobre isso, mas
eu estudava e lia bastante. Sempre achei que o fator que mais influenciava nossa
decadência era o roubo da magia de nossas terras. Quando os dragões vieram, só
os deuses sabem de onde, roubaram várias de nossas runas, e das que restaram,
nenhuma estava em Terrinoth. Os elfos tinham uma, e as outras ninguém sabia
onde estavam. Vez ou outra surgiam intrigas e conspirações que afirmavam que
alguma cidade livre estava mantendo uma runa escondida, mas, no fim das contas,
todos sabiam que era mentira, pois não se sentia mais a magia. Se houvesse uma
runa por perto, os magos sentiriam, disso não restava dúvida. Provavelmente,
até os humanos mais comuns poderiam senti-la.
Após a fuga dos dragões e as grandes
perdas de todas as raças que lutaram juntas pela honra de nosso mundo, os
barões, reunidos com os líderes das cidades livres, concordaram em se ajudar
para reconstruir as cidades e reestabelecer a dominância do reino sobre o
continente. Deveríamos evitar guerras e conflitos. Na verdade, era o que todas
as raças estavam fazendo, pois todos estavam enfrentando dificuldades. Mas,
eventualmente, as coisas iriam normalizar e voltaríamos a brigar por
território, dinheiro e poder. Eu já lera muitos livros de história, eu sabia
muito bem que era assim.
Como estávamos em número reduzido em
Sundergard, todos tínhamos quartos separados. Eu sempre ficava imaginando como
era antigamente, dizem que havia quartos que abrigavam até dez soldados.
Quando entrei no meu quarto e acendi
o lustre pendurado no teto, vi a água da chuva escorrendo pela madeira na
janela. Joguei um pedaço de pano no chão para evitar que ela se espalhasse pelo
quarto. Resolvi me deitar e descansar, pois após o jantar eu certamente teria
que fazer mais um turno de vigia, e estar atento era importante, por mais que
eu dificilmente fosse ver alguma coisa fora do comum. Ninguém tem visto há
décadas.
Retirei a armadura de couro que eu
sempre usava apenas por questões de formalidade. Deixei minha espada descansar
também, ao lado da minha cama, e apaguei as velas do lustre, deixando apenas
uma acesa para não ficar completamente escuro.
Não demorou muito para que eu
adormecesse. Foi um sono sem sonhos, e quando acordei com o barulho do vento
assoviando, bem mais forte do que durante a tarde, percebi que ainda estava
chovendo, e a água tinha chegado a molhar os lençóis que me cobriam. Notei que
eu estava tremendo de frio.
Fiz o primeiro movimento para me
levantar, já pensando em vestir minha armadura e me apressar para o jantar.
Porém, o movimento simplesmente não se concretizou. Foi quando eu vi, no canto
no meu quarto, uma forma sombria. Era uma silhueta, mas eu não conseguia ver
nenhum traço, apenas sua forma sólida. Em outras circunstâncias, eu diria que
alguém tinha entrado no meu quarto, qualquer que fosse o motivo. Mas a forma
simplesmente evaporou após alguns segundos, se juntando às sombras que a única
vela do lustre projetava na parede.
Eu acalmei minha respiração ofegante
e finalmente consegui me mover, limpando o suor que escorria na minha testa.
Aquela foi a primeira vez que a vi.
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