domingo, 19 de maio de 2019

Os Cavaleiros de Riverwatch [1: Alianças/Amizades] - Parte 2


O jantar daquela noite não foi dos melhores. Na verdade, os jantares do final do mês nunca eram muito bons, pois consistiam apenas de sobras. Todo início de mês, as provisões chegavam de Riverwatch, junto com mensagens de nossos familiares e ordens de nossos superiores. Amanhã seria o dia.
            Mastigando e engolindo com esforço a carne dura, eu jantei com a cabeça baixa e não pronunciei uma palavra sequer com meus companheiros. A imagem da sombra no meu quarto não saia da minha cabeça.
            Eu ainda estava sonolento, e as luzes fracas das tochas tremeluzindo com o vento embaçavam minha visão e faziam parecer que eu estava sonhando acordado. Levantei a cabeça ao ouvir um dos Cavaleiros de Riverwatch dizer algumas palavras sobre oração e vigia. Alguns dos garotos se levantaram e foram para um pequeno santuário dedicado a Kellos, que ficava no centro da fortaleza.
            Kellos era cultuado por praticamente todos os guerreiros de Terrinoth, e nós o chamávamos de deus. Porém, ele não era como os deuses élficos lendários, que criaram o mundo e as raças, e que tinham poder sobre inúmeras coisas. Kellos já fora um humano. Os livros de história falavam dele e de seu heroísmo durante a Segunda Escuridão. A cidade de Vynelvale, logo ao sudeste de Sundergard, tinha um grande monastério dedicado a ele, e muitos devotos de toda Terrinoth faziam procissões a pé por incontáveis distâncias até a cidade sagrada.
            Eu não era muito religioso, mas respeitava Kellos e admirava seus feitos heroicos. Quem sabe um dia eu fizesse dez por cento do que ele fez, e conhecesse metade das coisas que ele conheceu. Mas, por enquanto, eu apenas iria fazer meu dever e vigiar o sul da fortaleza novamente, mais uma noite.
            Após lavar meu rosto para despertar mais um pouco, subi pela mesma escadaria que tinha descido mais cedo, acendendo novamente algumas tochas que já tinham se apagado com a força do vento. A chuva não dava sinais que iria parar, e agora se ouviam trovões à distância. Minha vigia era apenas simbólica, pois eu mal conseguia ver dois palmos a minha frente sem a luz da lua e com a chuva impossibilitando que as tochas lá embaixo ficassem acesas. Vez ou outra, um relâmpago iluminava a floresta à frente e eu via uma paisagem sinistra se revelar de relance diante dos meus olhos, apenas para se apagar novamente em instantes.
            E assim se seguiu a noite. Ninguém apareceu para conversar, como já seria de se esperar, e, quando eu estimei que já teria se passado um quarto da madrugada, a chuva começou a acalmar, e a tempestade estava se distanciando para o oeste cada vez mais.
            Não demorou muito para que eu ouvisse uma voz me chamando, e um de meus colegas trocasse de turno comigo. Apenas agradeci e segui para meu quarto. Estava morrendo de sono.
            A umidade era quase palpável dentro das paredes de pedra. Depois de tanto tempo seguido de chuva, ia demorar uns dias para que tudo secasse e voltasse ao normal. Os lençóis da minha cama estavam meio úmidos, mas não tinha muito o que fazer. Eu suspirei, me despi, deixando apenas a roupa de baixo, e deitei.
            Apesar de estar cansado, acordei algumas vezes durante a noite. Não me lembro de ter tido pesadelos, mas despertava com uma sensação ruim. Toda vez eu lembrava da sombra, mas, ao olhar em volta, tudo estava normal. Acabei me convencendo que estava ficando paranoico, e finalmente consegui dormir em paz.
            Quando abri os olhos na manhã seguinte, a luz do sol entrava pelas frestas da janela. Fiquei contente ao ver o tempo limpo de novo. Me espreguicei enquanto permanecia na cama, com um pouco de preguiça de levantar. Mas, então, lembrei que hoje chegariam as cartas de Riverwatch, e saltei rapidamente da cama, me vestindo e disparando em direção ao salão principal. Fazia quase seis meses que não falava pessoalmente com meus pais, e eu estava ansioso para saber se tudo corria bem. Eles mandavam uma carta simples todo mês, apenas para que eu ficasse tranquilo, e eu sempre respondia algo também, apenas para que soubessem que tudo continuava normal por aqui. Nós apenas podíamos nos ver de seis em seis meses, quando alguns eram liberados da fortaleza para visitar suas famílias brevemente.
            Entrei no salão e avistei algumas cartas espalhadas sobre a mesa, e alguns garotos nos cantos lendo as que tinham recebido. Eu me apressei e comecei a procurar alguma que estivesse endereçada a mim, mas não conseguia encontrar.
            “Acho que você está procurando isso”, disse a voz de Sir Shaldorth atrás de mim. Me virei e dei de cara com sua mão estendida segurando a carta que eu estava procurando.
            “Senhor, por favor, não faça mais isso. Eu fiquei muito preocupado quando não encontrei a carta.” Tentei forçar um sorriso, para não parecer bravo.
            “Segurei sua carta porque precisava falar com você. Vamos até meu aposento.” Ele estava bastante sério.
            “Aconteceu alguma coisa, senhor?” Comecei a abrir a carta dos meus pais bem devagar, enquanto estudava o rosto de Sir Shaldorth. Suspeitei que ele também tivesse recebido uma carta, mas que não tivesse gostado muito do conteúdo dela. De certo modo, eu estava certo.
            Ele virou as costas e começou a se dirigir para seu aposento. Eu o segui enquanto lia a carta de meus pais. Tudo estava bem, graças aos deuses, mas meu pai falou que havia rumores de conflitos no norte, próximo a região da Fronteira. Eu estremeci. As terras além da Fronteira eram a região onde se suspeitava que os dragões estivessem se escondendo após sua fuga, tramando algo desde então, para finalmente destruírem Terrinoth e tomarem a última runa dos elfos. Meu pai não soube dizer o que era, e nem quem estava envolvido.
            O silêncio de Sir Shaldorth estava me incomodando, e eu resolvi tocar no assunto para jogar conversa fora.
            “Meu pai parece estar preocupado com algo acontecendo perto da Fronteira.” Sir Shaldorth continuou quieto. Foi apenas quando nós dois entramos em seu aposento e a porta atrás de nós se fechou que ele começou a falar.
            “O governador de Riverwatch mandou uma carta para nós, Cavaleiros. Na verdade, eles receberam um pedido de ajuda de uma das torres da Fronteira.” As torres da Fronteira eram pequenos postos avançados mantidos por humanos, anões, orcs e gnomos. Haviam sete delas, e sua missão era evitar que qualquer coisa além da Fronteira entrasse em Terrinoth. Era um trabalho parecido com o que fazíamos em Sundergard, mas lá era um pouco mais complicado, e os patrulheiros escolhidos eram só os melhores guerreiros das nossas terras.
            “A torre I capturou um goblin das tribos além da Fronteira.” Continuou Sir Shaldorth. “Ele estava tentando se infiltrar em Terrinoth para conseguir informações. Eles torturaram a criatura e ela confessou que estão planejando uma invasão liderada por ninguém mais ninguém menos que o próprio rei goblin, o infame Splig. Eles deram graças aos deuses por terem conseguido essa informação a tempo, pois se não seriam dizimados. Os goblins pretendiam se esgueirar por uma região ao sul da torre I, onde atravessariam o Rio Lotham com suas hordas e tomariam as duas torres do sul assim que baixassem a guarda. Os goblins não sabem que seu espião foi capturado, pois os patrulheiros o convenceram a escrever uma carta dizendo que está tudo correndo normalmente e enviar para seus superiores. Ao que tudo indica, as hordas virão em sete dias. Eles precisam de ajuda para fortalecer suas defesas e pegar os goblins de surpresa.”
            Eu mal conseguia respirar. Em toda minha vida, aquela era a primeira vez que um conflito estava acontecendo de verdade em Terrinoth. Bem, ele ainda iria acontecer, na verdade. Meu pai estava certo em relação aos rumores, mas não pude deixar de pensar que, se até meu pai já tinha ouvido falar, o que impedia os goblins de não terem alguém informando eles também.
            “Mas, senhor, por que está me contando tudo isso? Não é um assunto confidencial?” Perguntei, ainda atônito com as informações e com mil coisas passando por minha cabeça.
            “Regg, acho que você vai realizar seu sonho de conhecer Terrinoth um pouco antes do que pensava. Eu preciso mandar alguém competente de Sundergard para ajudar. Eu não posso ir, preciso supervisionar os garotos que estão sob minha responsabilidade. Os outros Cavaleiros também. Você é um dos mais velhos e mais experientes dentre os que ainda não são cavaleiros, então já mandei uma carta de volta ao governador dizendo que você irá.”
            “Espere, só uma pessoa? Como eu sozinho serei capaz de ajudar os patrulheiros?”
            “Mais pessoas estão vindo, você irá conhecê-las em breve. Além disso, os patrulheiros da torre II irão se deslocar para reforçar o sul da torre I. Você também não conhece os magos. Eles são muito poderosos e valem por dezenas de goblins com adagas. E os goblins não têm feiticeiros para ajudá-los, não agora que a magia se perdeu em Mennara. Esse não vai ser um combate de números, mas de inteligência. Os goblins estão confiantes, e vão quebrar a cara. Você aprenderá muito com essa viagem.”
            “Mas se a magia se perdeu em Mennara, como ainda temos magos lutando ao nosso lado?” Eu não estava entendendo, como ainda existiam pessoas capazes de usar magia, se as runas tinham sido tomadas pelos dragões?
            “Eu não sou a pessoa mais adequada para explicar esses assuntos de magia, Regg, mas já vi esses homens e mulheres em ação. Pelo que ouvi dizer, alguns conseguem retirar energia da runa restante que está com os elfos, por mais que ainda esteja longe, pois estudaram muito para desenvolver essa habilidade; enquanto outros têm como fonte de poder algum artefato. A questão é que apenas os que são feiticeiros natos não conseguem mais acessar a magia, por isso não precisamos nos preocupar tanto com raças tribais, que dependem totalmente de sua linhagem sanguínea para utilizar feitiços.”
            Sir Shaldorth esclareceu um pouco minha dúvida, mas eu ainda não acreditava que seríamos capazes de lutar contra hordas de goblins em menor número. As histórias diziam que eles lutavam até a morte e eram muito determinados. Mas a história acabara de ser contradita quando Sir Shaldorth contou sobre a traição de um deles, então eu preferi não mencionar isso.
            “Quando devo partir?” Foi apenas o que consegui dizer.
            “Amanhã de manhã um barco virá de Vynelvale. Ele trará dois de seus companheiros de viagem. Vocês imediatamente seguirão sozinhos até a torre I, pois não podemos chamar atenção. Terrinoth não está preparada para lidar com um conflito ainda, e não podemos arriscar que traidores levem informações para os goblins.”
            Assenti com a cabeça. As coisas ainda não estavam claras. Até algumas horas atrás, eu mal imaginava que um dia conheceria outro lugar que não fosse Riverwatch ou Sundergard, e agora eu estava partindo numa missão importantíssima para a Fronteira.
            Sir Shaldorth percebeu que eu precisava refletir, e pediu para que eu fosse descansar. Eu estava liberado do meu turno de vigia por hoje. Só os deuses sabiam quando eu faria um turno de vigia de novo.
            Eu saí do aposento de Sir Shaldorth e comecei a me dirigir para meu quarto. Mal tinha acordado e já precisava deitar de novo. Eu queria escrever uma carta para meus pais tranquilizando-os. Não iria falar sobre minha missão, apenas ia fingir que tudo continuava o mesmo.
            Quando abri a porta do meu quarto, tudo parecia escuro. A manhã lá fora estava clara, e o sol ainda deveria estar entrando pelas frestas da janela. Mas tudo estava tomado por uma sombra. A sombra começou a se mover, deslizando sobre as paredes e indo parar num ponto à frente da minha cama, diante de onde eu estava parado, ainda com a mão na maçaneta da porta, com medo de dar um passo adiante. Uma silhueta se formou diante de mim, e dessa vez eu pude perceber que não era apenas um vulto. Era uma forma feminina. Era possível distinguir seus cabelos longos, como se estivessem esvoaçando com a brisa. Porém, ainda era uma silhueta, e eu não podia ver seu rosto ou seus detalhes. Ela estava de joelhos no chão, e por um momento parecia que não sabia onde estava, e não tinha notado minha presença. Mas de repente ela moveu sua cabeça e, por mais que não pudesse ver seus olhos, eu sabia que estava olhando para mim. Eu não consegui mover nenhum músculo, e não sei quanto tempo fiquei naquela posição, apenas fitando a criatura à minha frente.
            De repente, tudo passou. O sol estava entrando novamente pelas frestas da janela, e as coisas estavam do jeito que eu tinha deixado no quarto. Não havia nenhum sinal da sombra. Dessa vez, eu sabia que não tinha sido só uma ilusão ou um pesadelo, ela era real, mas eu não sabia o que ela era.
Aquela foi a segunda vez que a vi.

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